10.9.06

recomeço

ele destrói tudo o que está no quarto. joga os livros todos no chão, arranca a televisão do suporte. destrói o quadro de fotos, quebra a cama. os pôsteres estão rasgados, o computador está em pedaços em um canto, nada está no lugar.

ele respira ofegante, olhando para tudo.

e começa a juntar novamente os pedaços.
faço da minha vida um filme...

o elenco é um tanto grande e eu não gosto muito do protagonista.

mas, acho que ele precisa de um par romântico.

se ao menos eu pudesse ler o roteiro.

não! na real, eu queria ter acesso ao roteiro para mudar algumas partes do passado do protagonista.

personagens complicados me parecem um tanto fáceis de se prever. sempre terminam se enrolando.

é. reviravoltas. preciso de reviravoltas no roteiro.

e sem dúvida, de uma luz melhor.

mas eu gosto da trilha sonora...
a fumaça desenha círculos etéreos em volta dos olhos verdes dela.

eu observo e me calo.

há beleza em cada característica. mesmo nas que eu não suporto.

ok. sou um peixe fisgado... mas... para aqueles olhos, me entrego sem pensar.

negócio arriscado

a fumaça com cheiro de pólvora se mistura à fumaça de tabaco.

os tiros ainda ecoam no beco. o homem de sobretudo segura a arma no ar, como se fizesse pose para uma foto.

a chuva escorre do corpo caído. uma poça de água e sangue se forma no chão. olhos vidrados olham em direção ao céu.

o homem joga o resto do cigarro fora e guarda a arma calmamente. sente o cano ainda quente, no coldre junto ao peito.

ele fecha o sobretudo e caminha em direção a um carro. a chuva cai violentamente, como se deus quisesse lavar o mundo de tudo o que é errado.

"não ia sobrar muita gente", o homem pensa.

ele entra no carro e pega algo no porta-luvas. olha o distintivo da polícia por um segundo e o recoloca dentro do bolso da camisa.

um celular toca. o homem atende:

"eu."

"e então?"

"já foi."

"ótimo. nos encontramos mais tarde?"

"ok. mas esse foi o último."

"a gente conversa sobre isso depois. no lugar de sempre?"

"é. trás a grana."

"claro. até."

as luzes dos faróis tentam iluminar a noite, mas a chuva não deixa.

o homem sai com o carro, sabendo que o corpo que está jogado no beco não foi o último. mais um corpo espera por ele num restaurante, com uma mala cheia de dinheiro.

natascha

ela não consegue respirar.

as paredes do quarto se fecham cada vez mais. ela não sabe se é dia ou noite, não há janelas. não há saída.

as paredes se fecham sobre natascha. ela luta contra a exaustão e o sono.

ela chora em silêncio. já não tem mais voz.

as mãos estão machucadas de bater na porta. sua mãe não pode ouvir. ninguém pode.

as paredes se fecham e ela não consegue respirar.

medo.

na primeira noite (era mesmo uma noite?) ela pediu para fugir.

depois pediu a deus para morrer.

deus não a ouviu.

natascha está sozinha.

não. quando a luz do lado de fora do quarto se acende, ela sabe que não está sozinha.

ele. ele está lá.

a porta se abre e a luz invade o minúsculo quarto.

cega, ela se arrasta para a parede contrária.

não é longe o bastante.

natascha não pode escapar.
às vezes canso de falar de mim...

juro que hoje queria falar de outra pessoa, outra vida.

mas aí percebo que a única pessoa que conheço de verdade sou eu (e mesmo assim, ainda me surpreendo). e a única vida que sei como é vivida é a minha.

e eu estou aqui lutando contra uma vontade enorme de cavar um buraco no me quarto e passar alguns anos por lá.

nha... coisas do domingo. não liguem...
o garoto olha os homens indo embora
apinhados como bichos, no caminhão
que chora e range enquanto se afasta.

ele ficou com as irmãs e a mãe.
o homem que ele chama de pai se foi
o garoto que ele chama de irmão também.

nos meses seguintes, suas únicas companheiras são
a mãe
as irmãs
e a fome.

ele vai com a irmã mais velha todas as manhãs, buscar água
água com cor de terra
e gosto de terra
mas que os faz sobreviver mais um dia.

o sertão tem a cara da morte,
usa uma máscara de caveira de boi.

um dia, sua irmã mais nova morreu
assim, assim...
parou de se mexer (não chorava há alguns dias),
desistiu de lutar contra a fome e a sede.

a mãe a enterrou no fundo do quintal.

a morte é companheira do menino.
ele conversa com ela todos os dias, quando vai dormir.

o menino houve a mãe falar de deus e do diabo,
do céu e do inferno.
ele não precisa de explicações,
sabe bem em qual dos dois está.
ele olha para o céu, que começa a clarear.

a grande lua cheia ainda reina, mas as nuvens no horizonte começam a se avermelhar, antecipando a presença de uma manhã.

a paisagem se move depressa, do lado de fora da janela do carro. as luzes da cidade vão sa afastando. o homem observa e não pode deixar de ficar impressionado com a beleza dessa simplicidade.

a cidade se torna onírica, no final da madrugada. não há pessoas nas ruas, tudo parece deserto.

ele ouve o sussuro da cidade que ainda dorme e guarda seus segredos.

os primeiros raios de sol pintam de dourados os edifícios. ao longe, o mar parece competir com o sol que se levanta, espalhando luz por todos os lados.

o homem pensa consigo mesmo que o amanhecer e o anoitecer são as horas que ele mais gosta. elas têm um sentido quase religioso de mudança.

a paisagem se afasta rápido, do lado de fora.

dentro do carro, um homeme sorri.