...
sentir tudo de todas as maneiras,
ter todas as opiniões,
ser sincero contradizendo-se a cada minuto,
desagradar a si próprio pela plena liberalidade de espírito,
e amar as coisas como deus.
eu, que sou mais irmão de uma árvore que de um operário,
eu, que sinto mais a dor suposta do mar ao bater na praia
que a dor real das crianças em quem batem
(ah, como isto deve ser falso, pobres crianças em quem batem —
e por que é que as minhas sensações se revezam tão depressa?)
eu, enfim, que sou um diálogo continuo,
um falar-alto incompreensível, alta-noite na torre,
quando os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes toque
e faz pena saber que há vida que viver amanhã.
eu, enfim, literalmente eu,
e eu metaforicamente também,
eu, o poeta sensacionista, enviado do acaso
as leis irrepreensíveis da vida,
eu, o fumador de cigarros por profissão adequada,
o indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim,
prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo
e acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo...
eu, este degenerado superior sem arquivos na alma,
sem personalidade com valor declarado,
eu, o investigador solene das coisas fúteis,
que era capaz de ir viver na sibéria só por embirrar com isso,
e que acho que não faz mal não ligar importância à pátria
porque não tenho raiz, como uma árvore, e portanto não tenho raiz
eu, que tantas vezes me sinto tão real como uma metáfora,
...
trecho de "passagem das horas" de álvaro de campos... ou fernando pessoa, para os íntimos... :)
4.1.06
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